Vinhos biológicos, naturais e outros que tais



No filme 007 - Moonraker (Uma aventura no espaço), de 1979, com Roger Moore no protagonista, lá para o fim do filme o vilão Drax encontra James Bond no seu vaivém espacial, depois de várias tentativas para o matar ao longo do filme, e diz-lhe:
“James Bond! Aparece com a regularidade inevitável duma estação indesejada”.

Lembrei-me desta frase a propósito das modas do vinho. Também é cíclico: já se sabe que, com uma regularidade inevitável, lá somos “educados” com os ditames da “moda”, do que “o mercado quer”, dos “gostos do consumidor” – coisa tão comprovável como as aparições de Fátima ou a existência de homenzinhos verdes em Marte com antenas na cabeça...

Isto para já não falar, obviamente, do chavão parolo instituído no país sobre o “melhor vinho do mundo” sempre que algum vinho português ganha uma medalha de ouro num qualquer concurso lá fora...

Basta recuar uma década para chegarmos ao tempo da “moda” dos vinhos feitos segundo “o que o mercado quer”, com carradas de álcool, toneladas de madeira e montanhas de açúcar, que invadiram as prateleiras durante anos, porque um senhor de nome Robert Parker – uma espécie de guru da enocrítica – decidiu que esses vinhos é que eram bons e portanto toda a gente tinha de fazer vinhos para agradar ao senhor Robert Parker. O exagero chegou a um ponto em que comecei a olhar para a graduação alcoólica dos vinhos antes de os comprar e a rejeitar todos os vinhos a partir de 14º (coisa complicada a certa altura, pois quase não havia outros), porque já estava farto de beber xaropadas e aquilo que alguém de forma muito feliz baptizou como “pau líquido”. Agora parece que, afinal, a “moda” já está a ir no sentido contrário.

Veio depois a unanimidade sobre a Touriga Nacional. Foi “decretado” que esta é A GRANDE casta tinta portuguesa e a única que deve ser mostrada ao mundo como lídima representante das castas tintas nacionais. Vai daí, toca a plantar Touriga Nacional de norte a sul, esquecendo o Aragonês, a Trincadeira, a Tinta Caiada, a Baga, o Castelão, o Alfrocheiro, o Jaen, a Touriga Franca, o Tinto Cão ou a Tinta Barroca, numa verdadeira touriguização dos vinhos portugueses que levou mesmo o director da Revista de Vinhos, Luís Lopes, a escrever um artigo de opinião na edição de Novembro de 2008 em que a comparava a uma epidemia, e a sugerir, meio a sério meio a brincar, que se criasse uma ZLTN (Zona Livre de Touriga Nacional) nas vinhas e nos vinhos portugueses que lhe permitisse livrar-se da touriguite aguda de que já padecia.

Mais recentemente, no mundo dos brancos, descobriu-se o Encruzado no Dão. Toca a fazer monocastas de Encruzado em todo o lado, porque o Encruzado é que é. Esqueçam lá isso da Malvasia Fina, do Cerceal, da Bical, do Arinto ou do Verdelho.

Vem isto tudo a propósito daquilo que agora nos é anunciado como o novo paraíso, the next big thing: os vinhos naturais e os vinhos biológicos. Até está anunciado para estes dias em Cascais um colóquio, o Wine Summit Cascais'17, que vai debater o tema, tal a sua relevância.

Ou não? Parece que há alguma confusão logo na designação, porque os biológicos podem não ser naturais e os naturais podem não ser biológicos. Parece que o preço de tais vinhos também não será um grande atractivo.

Então porquê esta doutrina? Dizem-nos que é por causa da não utilização de produtos artificiais. Nem conservantes que impeçam o vinho de se tornar vinagre dentro da garrafa rapidamente, nem controlo de doenças nem de pragas. Porque, parece, dizem-nos, é com isso que o consumidor está preocupado...

Está???

Perante isto, fico cheio de dúvidas – eu sou um tipo que, ao contrário do outro, tenho muitas dúvidas e engano-me frequentemente. Se a intenção é deixar que toda a natureza faça o trabalho na vinha, será que a rega é permitida? Para que serve, então, o enólogo? Para que servem os cursos de enologia e os estágios em Bordéus, na Califórnia, na Austrália e na Nova Zelândia? Serão o Barca Velha, o Petrus ou o Romanée Conti indignos de apreço e do preço que custam por serem “vinhos não naturais”? E não será a utilização de porta-enxertos de vinhas americanas artificial? Porque não voltar às vinhas em pé-franco e rezar para que a filoxera não apareça outra vez por aí? Se calhar vem já aí a seguir o regresso ao inefável “vinho caseiro” que se faz nas aldeias, por métodos ancestrais absolutamente naturais, e que produz excelentes zurrapas que não aguentam 3 meses no garrafão!

Não sei porquê, mas toda esta conversa faz-me lembrar outras do género. Porque não deixar de vacinar as crianças, como alguns pais já fazem, e esperar que as doenças se curem por métodos naturais e não matem as pessoas? Porque não deixar de usar antibióticos e outros medicamentos que serviram para erradicar doenças como a varíola? Porque não deixar de usar desinfectantes nas feridas e esperar que se curem sozinhas? Porque não deixar de ter filhos nas maternidades e voltar a tê-los em casa com uma parteira, como no tempo dos nossos avós? E já agora, porque não acabar também com os contraceptivos e usar apenas os “métodos naturais”, como sempre defendeu a igreja católica?

Desculpem lá o desabafo, mas isto sou eu que não percebo nada disto, sou apenas um comprador que gosta de saber se aquilo que bebe justifica aquilo que paga. Não sei donde é que estas coisas surgem e, francamente, não estou nada preocupado com isso. Mas causa-me uma certa urticária que, de cada vez que alguém se lembra de decretar uma nova “moda”, surja imediatamente uma farta legião acrítica de seguidores, que alinham bovinamente naquilo que lhes é transmitido. Quanto à suposta preocupação do consumidor com os tais vinhos “naturais”, vou esperar para ver. E já agora, gostava de saber que estudos há – se é que os há – que comprovem que o consumidor está muito preocupado com a sustentabilidade da agricultura que dá origem aos vinhos que bebe.

Eu só gostava que deixassem de pensar que os consumidores são todos parvos e ignorantes e que engolem (literalmente) todas as patranhas que lhes querem vender. Como sempre fui avesso às modas, considero que estas só têm uma coisa boa: é que, por serem apenas isso, passam de moda. Felizmente. E felizmente que ainda vão subsistindo uns resistentes, qual aldeia gaulesa do Astérix, que teimam em vogar contra a corrente. Como Dirk Niepoort, que se atreve a dizer que “menos é mais” (menos concentração, menos doçura, menos álcool, menos madeira); como Luís Seabra, que tem o arrojo de dizer que não gosta muito da Touriga Nacional porque tem tendência a marcar demasiado os vinhos e torná-los quase iguais; como Luís Pato, que teima em fazer tintos de Baga na Bairrada e deixá-los envelhecer; ou como Mário Sérgio Nuno, que se está nas tintas para a certificação Bairrada nos rótulos. Ainda bem que estes nunca estão na moda, pois fazem vinhos que nunca passam de moda e, por isso, podem beber-se em qualquer altura.

Kroniketas, enófilo fora de moda

Comentários

Unknown disse…
Caro Mário Feliciano. Estou genericamente de acordo com tudo o que afirmas na tua "kroniketa". Pelo menos em matéria de vinhos temos muitos pontos em comum, à parte as dissidências desportivas. A propósito, a Inês está no Estoril a participar no Wine Summit e a adorar. Acho que é uma excelente iniciativa, com um painel de altíssimo nível e que vai fazer muito bem aos vinhos portugueses, à nossa indústria de rolhas, etc. Espero que o evento se afirme pois precisamos de visibilidade para conquistarmos mercado, por muito que possamos enquanto consumidores ser prejudicados por um eventual aumento de preços. Estávamos tão bem aqui no nosso cantinho a beber vinhos excelentes a preços moderados e vem esta fauna toda chamar a atenção do mundo para a qualidade dos vinhos portugueses... Enfim, o mundo não é perfeito. Um abraço. Luís Bento (Magna Carta - Wine & Food)
JFerreira Alves disse…
Concordo Mário. Ainda agora estive em Évora, na Enoteca Cartuxa e me propuseram o EA biológico ou normal. Não gostei da proposta pelas razões que adusiste. JFA
Krónikas Tugas disse…
Caríssimos
Ainda que possa transparecer do meu post, eu não tenho nada contra a agricultura biológica e sustentável nem contra as práticas amigas do ambiente. Não é isso que está em causa, e tudo o que contribuir para melhorar a vida no planeta, ao contrário do que pensa o Trump, é bem-vindo.
Coisa diferente, porém, é meter isto na corrente da "moda": faz-se assim porque agora é moda. Então e quando passar de moda, já não interessa? E em que é que estas práticas, objectivamente, podem melhorar a qualidade dos vinhos?
E até que ponto é que o consumidor está para aí virado? Existe alguém, em concreto, que entre o vinho A e o vinho B escolha aquele que ostenta a designação de "natural"? Vou ficar à espera para conhecer alguém.
Em suma: tudo a favor do respeito pela natureza, pela sustentabilidade da agricultura, pelas práticas mais saudáveis, pela preservação dos solos.
Tudo contra misturar estas práticas com "modas" ou "tendências de mercado".
Lelé Batita disse…
É como a moda das intolerâncias ao glúten e à lactose. Na maioria das vezes, não existe, não é comprovada quando se faz o teste, simplesmente é moda! E lucro das empresas de produtos dietéticos, que cada vez lançam mais marcas com rótulo "Lactose Free" ou "Glúten Free", e que muitas vezes são caríssimos.