No meu copo 90 - Pinheiro da Cruz 1997, 1999, 2003



O primeiro contacto que tive com este vinho foi na já longínqua colheita de 1991, então através duma amiga que tinha contactos com alguém que adquiriu a garrafa directamente na produção. Tinha um carimbo no rótulo com o ano de colheita e a indicação original no brasão de que provinha da prisão de Pinheiro da Cruz, ali para os lados de Grândola e Melides.

Era um vinho surpreendente, com um perfil um pouco rústico, cheio de corpo e robustez, daqueles vinhos que se “mastigam” e nunca mais acabam. Rapidamente se revelou apropriado para se bater com pratos bem fortes e condimentados, e ao longo dos anos tive oportunidade de o comprar e beber algumas vezes em restaurantes. Uma das melhores combinações que encontrei foi com um arroz de lebre muito condimentado, malandrinho e com um molho muito espesso que comia no Barrote Atiçado, na Pontinha, às portas de Lisboa (que entretanto mudou de nome para António do Barrote e de local para o Parque Colombo, em Carnide). “Aquele” Pinheiro da Cruz era perfeito para a pujança daquele prato.

Nessa altura era quase uma raridade e difícil de comprar fora da própria prisão, embora o Pingo Doce tivesse desde logo lançado a colheita de 1992 numa das suas feiras de vinhos. Também por isso era caro quando aparecia. O exemplar de 1997 que aqui vos apresentamos foi um de 3 exemplares adquiridos por 2775$ (13,84 €) na feira de vinhos do Continente de 1999. Em 2005, no Corte Inglês, uma garrafa de 2002 custou 12,95 €.

Com a instauração de uma série de novas regiões vitivinícolas de norte a sul, nomeadamente a criação das DOC Alentejo, Ribatejo e Estremadura e ainda os vinhos regionais, o Pinheiro da Cruz, que entretanto alargara a produção, deixou de ser vinho de mesa como era originalmente e pretendeu também ser classificado com uma denominação de origem. Tinha todas as características de vinho alentejano, mas surpreendentemente começou a aparecer como Vinho Regional Terras do Sado a partir da colheita de 98. O rótulo estilizou-se, passou a haver informação no contra-rótulo e a indicação das castas utilizadas. E, para satisfazer as exigências da denominação de origem (certamente a burocracia impediu que fosse classificado como vinho alentejano), descaracterizou-se. A primeira colheita com o novo rótulo mostrou um vinho muito mais aberto e frutado que os anteriores, deixando de ser aquele vinho poderoso que fora até aí. Em suma, acabou por vulgarizar-se.

Deve ter sido também devido a isso que foi possível aumentar significativamente a produção e encontrá-lo agora à venda a uns módicos 6,44 € na feira de vinhos da Makro. É mais acessível, mas eu preferia o perfil antigo e mais caro.

Nos últimos meses fui à garrafeira buscar os exemplares que lá tinha, de 1997, 1999 e 2003. O primeiro e o último foram bebidos no recente jantar de javali com a “cambada”. O de 1997 foi decantado com todos os cuidados para evitar a passagem de borras para os copos e para lhe dar tempo de respirar. Revelou-se ainda em excelente forma, a fazer lembrar os mais antigos, embora com esta idade tivesse já perdido a pujança inicial, mas ainda se bateu excelentemente com o javali. Já o de 2003, mais frutado e leve e sem aquela robustez anterior, ainda assim aguentou-se no balanço. Quanto à colheita de 1999, bebida há algum tempo a acompanhar uma lebre, já não tinha a frescura inicial mas aproximava-se mais das características da de 1997 e também se bateu bem com a caça.

Curioso é ver a informação do contra-rótulo, de que apresentamos aqui o de 2003 (clique na imagem para ampliar). O de 1999 era composto pelas castas Castelão, Trincadeira, Alicante Bouschet e Aragonês, mas ao de 2003 foram ainda acrescentados o Syrah e o Cabernet Sauvignon, ou seja, estamos perante as castas da moda para fazer um vinho que acompanhe a moda. Mais curioso ainda é observar a evolução do grau alcoólico de colheita para colheita: de 12,5% em 1997 para 13% em 1999 e 14% em 2003, a seguir a tendência da moda.

De realçar que deste último contra-rótulo desapareceu a frase assassina “A sua alma nasce do sentimento que os reclusos põem neste trabalho que os liberta”.  “O trabalho liberta” era a frase que esperava os presos à entrada do campo da morte de Auschwitz. Há ideias que nunca se deviam ter.

Enfim, o Pinheiro da Cruz já não é aquele vinho que nos surpreende no primeiro impacto, mas ainda assim continuamos a achar que vale a pena tê-lo na garrafeira. Até porque agora se tornou bem mais acessível.

Kroniketas, enófilo esclarecido

Produtor: Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz

Vinho: Pinheiro da Cruz 1997 (T)
Região: Vinho de mesa
Grau alcoólico: 12,5%
Preço em feira de vinhos: 2775$
Nota (0 a 10): 8

Vinho: Pinheiro da Cruz 1999 (T)
Região: Terras do Sado (Melides - Grândola)
Castas: Castelão, Trincadeira, Alicante Bouschet, Aragonês
Grau alcoólico: 13%
Preço: cerca de 12 €
Nota (0 a 10): 7

Vinho: Pinheiro da Cruz 2003 (T)
Região: Terras do Sado (Melides - Grândola)
Grau alcoólico: 14%
Castas: Castelão, Trincadeira, Alicante Bouschet, Aragonês, Syrah, Cabernet Sauvignon
Preço em feira de vinhos: 6,44 €
Nota (0 a 10): 7

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